Thursday, October 24, 2013

Natureza humana e infraestrutura social

Na última postagem falamos um pouco sobre as diferentes metas da vida humana. A possibilidade de realização dessas metas pode dar-se de diversas maneiras, mas dentro do Dharma existe a concepção de que uma determinada sociedade tem que dispor corretamente sua estrutura  de maneira que o ser humano possa realizar seus objetivos (purushartha), levando-se sempre em conta que os diferentes seres humanos manifestam diferentes potencialidades ou naturezas. Isso teria semelhança com o conceito de "justiça" da República de Platão, que consiste basicamente noção de que é necessário distribuir o acesso a certos bens (espirituais, materiais) de acordo com as diferentes naturezas dos seres humanos.

Na República de Platão, para explicar a estrutura da alma humana, Sócrates discorre longamente sobre a justiça aplicada socialmente, uma vez que isso seria uma forma de lente de aumento para conhecer a estrutura da justiça também na alma individual. Da forma semelhante, no Dharma também há relações entre o homem, arquetipicamente concebido, e a estrutura de uma sociedade, que é entendida como sendo uma manifestação visível do homem universal, do "purusha". As diferentes categorias sociais são resultado, no contexto escritural, do sacrifício do "purusha", o homem universal, que, segundo a narrativa tradicional,  é desmembrado, dando origem às diferentes naturezas ou funções a partir de diferentes partes de seu corpo . 

A primeira coisa que deve-se ter em mente é que não estamos abordando aas possibilidades de realização da perfeição exclusivamente desde o ponto de vista individual ou "biográfico", que seria mais apropriadamente enquadrado no que se conhece como "ashramas", e tampouco estamos falando de temperamentos individuais, que são temas que serão abordados posteriormente quando tivermos oportunidade. Portanto, quando estamos tratando da realização da perfeição desde o ponto de vista da articulação infraestrutural entre o individual e  social estamos falando de "varnas", que são as famosas "castas".

A varnas se dividem em quatro grandes categorias: brâmanes, xátrias, vaixias, e sudras. É importante notar que existem 3 maneiras distintas de classificar as varnas: pela natureza ou qualidade predominante (guna), pela função que ele desempenha na sociedade (karma), e pelo nascimento (jâti).

Quando classificamos as varnas segundo a qualidade, os brâmanes seriam os indivíduos nos quais predomina a chamada "sattva guna", ou seja, seriam indivíduos nos quais naturalmente predominam as características de sabedoria, contemplação, solidão e a transcendência. Os xátrias seriam indivíduos nos quais há o predomínio da "rajas guna" em sua forma pura (mesclada com sattva), predominam neles a tendência o dinamismo, à energia, à motivação, à instauração da justiça, à defesa dos ideais, ao sacrifício e ao trabalho altruista. Os vaixias, por outro lado, teriam como característica predominante a "rajas guna" em sua forma impura (mesclada com tamas), ou seja, eles são dedicados essencialmente à atividade egoísta (em sentido amplo e não necessariamente com juízo de valor), eles são dinâmicos como os xátrias, têm energia e motivação, porém, ao contrário daqueles, tendem a defender seus próprios interesses ou interesses de seu grupo. Poderíamos dizer que os xátrias têm tendência a um dinamismo espiritual e os vaixias a um dinamismo material. E por fim temos os sudras, que são indivíduos com predominância de "tamas guna"; eles são pouco motivados internamente e normalmente são guiados por influências externas, funcionam inercialmente e letargicamente portanto, e têm suas motivações predominantes em coisas como alimentação, divertimento, sobrevivência e reprodução.

A segunda classificação das varnas diz respeito a funções sociais. Nesse caso, os brâmanes seriam indivíduos dedicados a qualquer função que envolva o estudo da espiritualidade, a interpretação das escrituras, a transmissão e preservação do conhecimento sagrado, a assistência espiritual, a reflexão e a transmissão contínua da sabedoria.  Os xátrias seriam indivíduos dedicados à proteção, manutenção, governo, ordem, lei, justiça, defesa, e policiamento de uma sociedade. Os vaixias se dedicariam ao comércio, à intercâmbio de bens materiais, produção de riqueza, etc. Os sudras, por sua vez, são indivíduos não especializados, que tendem a se dedicar a trabalhos que não requerem iniciativa ou dinamismo, coisas como trabalhos supervisionados ou 'força produtiva' em qualquer setor.

E por fim temos a classificação de "jâti" ou nascimento, que consiste na posição social herdada e mantida pelas estruturas de costume, de rito, ou de tradição, ou seja, basta que um indivíduo nasça em uma determinada família que tradicionalmente mantém certa posição e ele será considerado como parte daquela varna.  Observa-se que esse último caso tem uma importância desde o ponto de vista infraestrutural em uma sociedade tradicional: é natural (e de certa forma inevitável) que ocorra que uma determinada varna preserve sua existência contínua através da hereditariedade e de ritos, no entanto, uma sociedade tem que ter algum mecanismo contra o engessamento dessas infraestruturas transmitidas por nascimento, e quando isso não ocorre, entra-se numa crise civilizacional, pois há variação ou perversão, ou seja, indivíduos que nascem em determinada varna ou desempenham a função social de determinada varna manifestam tendências ou qualidades de outras varnas, causando corrupção e decadência com o tempo.

Desde esse ponto de vista, poderíamos dizer que a crise predominante nas sociedades da Kali-Yuga, é a inversão das correspondências entre naturezas e funções. É importante notar também que desde o ponto de vista tanto da "guna" como do "karma" é possível haver alguma mobilidade (mas não completa mobilidade como pretende a ideologia do "self-made man"), seja pela necessidade, aperfeiçoamento ou contingência, ou seja, um indivíduo tamásico pode desenvolver qualidades rajásicas, e um indivíduo sattvico pode desempenhar funções rajásicas, por exemplo. A imobilidade em geral se refere ao nascimento e às infraestruturas de transmissão ritual ou tradicional disso, e nenhum dos críticos tradicionais do chamado "sistema de castas", como o Buda, desconhecia ou negava a existência das diferentes naturezas e funções humanas.