Thursday, October 31, 2013

As três cordas da matéria

Nas postagens anteriores, ao definir as naturezas humanas, eu utilizei termos como "sattva", "rajas" e "tamas". Para alguns que já estão acostumados com a terminologia a coisa fica bem clara, no entanto, eu estou preocupado com que essas postagens também sejam entendidas por quem não estudou previamente o tema, e são realmente postagens básicas, de maneira que vou fazer uma breve explicação sobre isso.

Fundamentalmente, no nosso mundo, tudo o que é dinâmico se dá através de tríades. É a tríade, na manifestação, que opera o desequilíbrio e que causa o movimento dialeticamente, por assim dizer. Se o nosso mundo fosse constituído por dualidades, não haveria movimento, seja no sentido ascendente, descendente, ou expansivo. 

Pois sim, o fundamento desse três modos é conhecido no Dharma como a doutrina das três gunas (trigunatva): as três cordas que amarram a "roda do mundo" e que a mantém girando. Grande parte das escrituras hindus falam das três gunas no sentido de propor a libertação do homem, ou seja, propor o "kaivalya", que é o isolamento para além dessas três gunas, de maneira que grande parte dos livros se expressam em termos de prática espiritual e da análise da alma humana e não em termos de metafísica exatamente. Isso não quer dizer que o conceito seja exclusivamente uma definição de "estados de humor" ou algo assim, essa é uma interpretação errada, as gunas afetam todo o mundo manifestado e não só a disposição humana.

A primeira guna é "sattva". Esse nome tem um raíz em "sat" que indica o "ser". Alguns a traduzem como "bondade", o que é legítimo e está na semântica do termo (os platônicos especialmente entendem bem a convergência entre bondade e essência), no entanto, a "bondade", ao menos atualmente entre nós, tem  algumas conotações morais ou sentimentais não apropriadas e pouco metafísicas, de forma que pode evocar a ideia errada.

Eu vou preferir traduzí-la, depois de muito refletir, por "lucidez", tradução usada pel indologista George Feuerstein, muito apropriada pela etimologia e por abranger boa parte dos sentidos diversos do termo. O sattva se caracteriza pela pureza (nirmala), pela luminosidade (prakasha) e pelo vigor ou "saúde" (anâmaya). Essa corda ata ao ciclo dos renascimentos através do apego à felicidade (sukha) e ao conhecimento (jñana). Em um simbolismo mais profundo, o chamado simbolismo dos  três mundos, sattva estaria relacionado com o "svar" ou o éter, o espaço além da atmosfera. Para usar o simbolismo das direções espaciais, o sattva olha "para cima".

Lembrando oportunamente que tudo o que é afetado pelas gunas, de fato está no campo do "sat", porém não está necessariamente no campo da consciência (cit). Essa consciência é dada pelo "Espírito" (purusha), que está fora das cordas da matéria; mas esse é um outro tema. 

O Bhagavad Gita, famoso livro espiritual, diz que o que caracteriza rajas, que traduziremos aqui como "ação",  é o desejo ou a sede (tṛṣṇā). Em certo sentido, ele existe através da atividade e da inquietude para se "expandir" ou buscar novas manifestações em um mesmo plano. O rajas está identificado com a atmosfera, e o mundo intermediário (bhuvar-loka) na correspondência cósmica, está identificado também com o estado de sono com sonhos (svapna). O rajas ata o indivíduo porque a ação gera reação numa cadeia infinita. O rajas olha para as direções num plano horizontal.

O tamas, por fim, que traduziremos como escuridão, é caracterizado pela confusão, em sentido quase etimológico, ou seja, perda da luminosidade e da qualidade, e pela ignorância ou ausência de discriminação. Reduz as coisas à inércia ou ausência de dinamismo. Ele ata as pessoas pelo fato de que a escuridão impossibilita a ação, é uma espécie de sono. O tamas olha para baixo.

Notemos que esses simbolismos nem sempre são diretos ou óbvios, daí é relativamente difícil tratar disso de forma básica. Por exemplo, desde o ponto de vista do mundo físico o sono sem sonhos seria um tipo de entorpecimento e deveria representar um estágio inferior e não superior; da mesma forma o mundo além da atmosfera parece ter menos ação ou dinamismo que o mundo físico, etc. Essas aparentes dificuldades são resolvidas em correspondências simbólicas mais complexas e profundas e às vezes com correspondências invertidas. Por isso há que se tomar cuidado ao aplicar as coisas para diferentes planos.

Temos então, para concluir, o seguinte: as três cordas da matéria são a lucidez, a ação e a escuridão, que amarram perpetuamente o agente, respectivamente, pela felicidade (sukha), pela reação (karma) e pela intoxicação (pramâda).