Wednesday, December 27, 2017

O renascimento segundo o Veda (Parte III)

Segundo o Veda, cada uma das leis cósmicas é regida por um devatâ. Isso significa que temos a manifestação empírica de determinada unidade dos fenômenos, e temos uma espécie de lei transcendental, uma noção semelhante, de certa forma, às ideias platônicas; contudo o Veda entende que não são só estruturas inteligíveis, mas inteligências também. Assim, se há uma lei da gravidade, há um devatâ, se há um órgão da visão há uma devatâ do órgão da visão, ou seja, há um princípio inteligente que mantém cada aspecto da manifestação. 

Aqui é preciso remetermo-nos, antes de mais nada, à noção do ciclo anual como reprodução do infinito. O sol representa sûrya-devatâ, e sua visão frontal, além do ciclo terrestre é o caminho da iluminação. Desde o ponto de vista da terra como planeta, e desde o ponto de vista do nosso plano de existência (bhur), temos duas relações com a luminosidade solar, o ciclo completo é a divindade do ano, e há duas aproximações dessa divindade - o curso solar austral, que é a divindade representada pelos seis meses em que o sol, em relação a um observador fixo, 'caminha' em direção ao sul, e o curso solar boreal, em que, para o observador fixo, o sol caminha em direção ao 'norte'.

A divindade do sul é a que rege o caminho chamado pitryâna, krishna-marga, ou 'caminho da fumaça'. Esse caminho não permite a visualização da divindade do ciclo anual, e nem a contemplação direta do sol, portanto é um ciclo que desdobra-se internamente e aqueles que o seguem permanecem sob a iluminação lunar.

Vou citar aqui traduções das três principais escrituras sagradas que tratam do tema.

No Bhagavad Gîta temos o trecho abaixo:
B.G. VIII.23-26. 
Mas em que tempo (kâla) os yogues retornam ou não, depois que morrem, é disso que vou falar Árjuna:  Fogo, luz, dia, a via branca, os seis meses do curso solar boreal, ao partir então, aqueles que conhecem o Brahman, vão para o Brahman. Fumaça, noite, a via negra, os seis meses do curso solar austral, pelo brilho da lua o yogue nasce novamente. Estes são os dois caminhos: luz e escuridão, perpétuos nesse universo.Por um deles não se retorna, pelo outro sim.
É bom insistir que aqui temos de entender que o 'kâla' não é tampouco tempo cronológico em que o indivíduo morre, mas se refere aos auspícios de devatâs relacionado aos tempo. Abhinavagupta em seu comentário ao Gîtâ observa:
"É suficiente dizer aqui que todas as divisões externas de tempo (kâla) pertencem à esfera do tempo interno (âbhyantara kâla). E para entender isso, é preciso praticar yoga."
O Gîtâ cita os seguintes devatas para a via solar, contudo há um número maior e mais detalhado nos Upanishades.

1. Agni devatâ (divindade do fogo)
2. Jyotir devatâ (divindade da luz)
3. Ahar devatâ  (divindade do dia)
4. Shuklapaksha devatâ (divindade do período luminoso da lua)
5. Uttarâyana devata (divindade do curso solar boreal)

Na via lunar o Gîtâ menciona uma divindade a menos:

1. Dhûma devatâ (divindade da fumaça)
2. Râtri devatâ (divindade da noite)
3. Krishnapaksha devatâ (divindade do período obscuro da lua)
4. Dakshinaya devatâ (divindade do curso solar austral)

Só se alcança a divindade do ciclo anual por meio do uttarayana-devata, e é a partir da divindade do ciclo anual que se chega à divindade solar (sûrya-devatâ); da divindade solar, por algum motivo não muito bem conhecido pelos humanos e nem revelado, o yogue que está na via solar retorna ainda à divindade lunar, e a partir da divindade lunar ele recebe a divindade do raio, e por fim, narra-se que algo ainda mais misterioso ocorre: uma 'pessoa não-humana', de vestes douradas, conhecida como 'a pessoa que vive dentro do sol' o carrega para fora do samsâra. 

Quando o yogue (e aqui o título 'yogue' a título de cortesia, explica Adi Shankarâchârya), percorrendo o curso solar austral não consegue atingir a divindade do ciclo anual, ele cai dentro do ciclo sublunar novamente. Aqui há um ponto interessante, pois as escrituras se referem àquele que atingiu a esfera da lua como tendo atingido a imortalidade. O que ocorre de fato, como explica Adi Shankarâchârya, é um 'tipo de imortalidade': a continuação até a dissolução dos elementos.

Segue o trecho completo que trata da via dos ancestrais no Chândogyopanishad:
Ch.Up.V.10.
3. Mas aqueles nas vilas [em oposição aos ascetas], que praticam uma vida de libações e altruísmo, vão para a fumaça, da fumaça eles vão para a noite, da noite para a fase obscura da lua, da fase obscura da lua para os seis meses da trajetória austral solar, mas eles não alcançam a divindade do ciclo anual.
4. Das divindades dos meses da trajetória austral, eles seguem para o mundo dos ancestrais, do mundo dos ancestrais para o éter, do éter para a lua. Essa é o rei Soma. Esse é o alimento dos devas. Os devas o comem.
5. Tendo ali vivido enquanto houver o resíduo de mérito, eles retornam pelo curso pelo qual vieram - [da lua] ao espaço, do espaço para o ar, e após terem se tornado ar, eles se tornam fumaça, e após terem se tornado fumaça, eles se tornam uma névoa. 
6. Após terem se tornado névoa eles se tornam nuvem, após terem se tornado nuvem eles chovem. Daí, renascem como arroz e cevada, ervas e árvores, sésamo e feijões. Assim, a libertação fica muito difícil pois, ele (que retornou) se torna igual àqueles que comem o alimento, e semeiam a semente (masculina).

E o trecho sobre o mesmo tema no Brhadâranyakopanishad:
Bh.Up.V.2.
9. Esse mundo, Gautama, é o fogo sacrificial. O sol é seu combustível, e seus raios são fumaça; o dia é sua chama, os quadrantes são seu carvão, os quadrantes intermediários são as faíscas. Esse fogo é que os devas oferecem a libação. É dessa libação surge Rei Soma.
10. A chuva, Gautama, é o fogo sacrificial. O ciclo anual é seu combustível, as nuvens são sua fumaça, os raios são sua chama, a trovoada são suas faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem o rei Soma. E dessa oferta surge a chuva.
11. Esse mundo, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. A própria é terra é seu combustível, o fogo é a fumaça, a noite é sua chama, a lua é o carvão, as estrelas são faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem a chuva. Dessa oferta surge o alimento.
12. O Homem, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. Sua boca aberta é o combustível, o sopro vital é a fumaça, a fala é a chama, o olho é o carvão, os ouvidos são faíscas. Nesse fogo os devas oferecem alimento. Dessa oferta surge o sêmen.
13. A Mulher, em verdade, Gautama, é o fogo sacrificial. Seu órgão sexual é o combustível; seus cabelos são fumaça, sua vulva é a chama, a penetração é o carvão; o prazer sexual são faíscas; nesse fogo os devas oferecem o sêmen. Dessa oferta O Homem surge, e vive o quanto tem de viver. E então, morre.
14. Eles carregam o homem para ser oferecido no fogo. Esse fogo se torna fogo. O combustível, combustível. A fumaça, fumaça, a chama, chama. As faíscas, faíscas. Nesse fogo os deuses oferecem o homem. Desse oferta, em cores radiantes, o homem surge.
[...]
16. Mas aqueles que por sacrifícios, caridade e austeridade conquistam os mundos, eles alcançam a fumaça (do fogo crematório), passam da fumaça em direção à noite, da noite eles passam para a fase obscura da lua, da parte obscura da lua eles passam para os meses do caminho austral do sol, e desses meses eles chegam ao mundo dos ancestrais, do mundo dos ancestrais vão à Lua e ao chegar á Lua, eles se tornam alimento. [...] eles voltam ao éter, do éter em direção ao ar, do ar viram chuva, da chuva viram terra. Chegando à terra tornam-se alimento. E novamente são oferecido no fogo do homem, renascem no fogo da mulher, com objetivo de renascer em outros mundos. Esse é o ciclo. Mas os que não conhecem essas duas vias se tornam insetos, mariposas, [...]

O panchagni-vidya como um exercício de transformação cognitiva

Resta ainda dizer que o panchâgni-vidyâ, segundo alguns âchâryas, não é uma descrição empírica e não visa rastrear cartograficamente um evento, como se em algum ponto do tempo e do espaço pudesse pegar o jîvâtman  e dizer o que está ocorrendo com ele. O vidyâ védico é oferecido inclusive uma meditação, um procedimento de sâdhana, talvez semelhante à dos estoicos em alguns aspectos, sobre a conexão e interdependência entre todos os níveis do Ser.

Vejamo como o explica Swâmi Krishnânanda em seu comentário sobre o Chângodgyopanishad:
Não há algo como ato privado nesse mundo. Não há algo como 'meu filho' ou 'seu filho'. Se esse segredo fosse conhecido, ninguém diria ' é meu filho, minha filha'. Não é seu, nem de ninguém. Pertence àquilo do qual veio. E de onde veio? Veio de cada uma das células do universo.Não veio da essência seminal do pai ou da mãe, como creem. É a quintessência de cada partícula da natureza inteira, de forma que o cosmos está refletido em todo corpo.Por isso é que se diz que o brahmânda é o pindânda—o macrocosmo é o microcosmo. O cosmo está reverberando e está refletido no bebê. Como é que você pode então dizer que é seu filho? É filho do universo, que vai tomar conta dele, e que vai removê-lo quando for a hora; é o universo que projeta a hora de retirá-lo por razões que são conhecidas somente pela lei universal."
E ainda:
"Somos tão ignorantes que pensamos que a criança nasce do útero da mãe.  É só isso que sabemos, mas esse é o tipo mais inferior de conhecimento que se pode ter sobre o nascimento de uma criança. A criança não é retirada do útero de uma mãe, como que por mágica. É um tremendo processo que ocorre através do cosmos. Todos os oficiais do governo do universo estão ativos na produção da jornada de uma criança.  Todo o universo vibra em ação, mesmo se um único bebê nasce em algum lugar, no canto de alguma casa. Não é um fenômeno privado de um bebezinho vindo de lugar nenhum em algum canto do mundo, com as pessoas acreditam por ignorância. .Todo o universo sente a presença e o nascimento de uma criança em qualquer lugar.  Então, o que produz a criança não é o pai e a mãe. É o cosmos inteiro que produz o bebê.  O universo é o pai desse bebezinho. Seja um bebê humano, sub-humano ou super-humano. [...] O universo inteiro é nosso pai, o universo inteiro é nossa mãe, o universo é o progenitor. 
E por fim:
"Não deveríamos considerar nada como um evento local, como uma estrutura local, como um corpo local, como um indivíduo local. Nada disso existe, e a ideia de que existem é a origem da escravidão. Somos escravizados por noções incorretas das coisas, não pelas coisas mesmas, mas pelas ideias erradas que temos sobre suas relações mútuas ou com outras coisas. Temos noções sobre as coisas baseadas inteiramente na percepção dos sentidos, e não na intuição sobre o pano-de-fundo da ocorrência dos eventos.  [...] mas a meditação propõe introduzir uma técnica de visualizar o universo inteiro como sendo responsável pela manifestação de todas as coisas, de forma que todas as coisas estão em todas as coisas, e todas as coisas estão em todos os lugares.  Não há nada como um indivíduo em particular, ou um corpo em particular. Essa é a meditação que nos liberta da escravidão do apego às coisas particulares. [...] A descrição das causas e seus efeitos nessas passagens do Upanishad, é, portanto, destinada a levar-nos acima do nível da percepção empírica normal, e abrir os portões de um conhecimento completamente novo, por trás dos efeitos visíveis dos chamados objetos de sensação, percepção e cognição.  

O ponto de vista dos samkhyas e yogues

Falta ainda abordar brevemente um ponto de vista que é relevante para o tema e para algumas escolas hindus. O texto clássico Samkhyakarika de Ishvarakrishna observa o seguinte sobre o linga-sharîra, que é o chamado 'envoltório sutil' que é a conexão gerativa ou genética que liga duas existências.
40. O linga-sharîra, formado no início do cosmos, não sujeito a obstáculos, permanente, composto pelos tattvas de buddhi para baixo, incapaz de desfrutar (ter consciência), é aquele que migra, e que recebe as impressões (kármicas).
41. Assim como uma pintura não existe sem um pano-de-fundo, a sombra sem o poste, o linga-sharîra não substiste sem suas especificações (os tattvas que o acompanham).
42. Para os propósitos do Purusha, o linga-sharîra, por meio de instrumentos e resultados, e com o suporte da Prakrti, age como um ator.
[...]
62. Nenhum Purusha é escravizado ou liberto, nenhum Purusha transmigra. É a Prakrti sustentada por suas diversas formas, que transmigra, que é liberta ou é escravizada.
Note-se que aqui os samkhyas e yogues dizem que todo o processo migratório é associado à Prakrti. Essa posição não é refutada nos Brahma-Sutras, e pode ser uma posição legítima desde certo ponto de vista restrito. Os vedânticos contudo não concordam no poder da Prakrti de criar e desenvolver o universo. Mas essa é outra questão.

Na próxima postagem vou tentar reunir o que foi abordado até aqui e comparar com algumas teses perenialistas de Evola, Schuon, Kumârasvâmî e Guénon sobre o tema.