Saturday, April 21, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 2)

Sita Ram Goel e Ram Swarup
Desde o ponto de vista ocidental, que se vê como o ponto de vista da raça humana mesma, o Islam aparece como um apêndice, irmão bastardo do cristianismo. Desde o ponto de vista das civilizações orientais, considerado por muitos como inexistente ou ilegítimo, ambas as tradições surgem como fato atípico e excepcional, motivo de perplexidade.

Ram Swarup observa que a primeira fase nítida desse encontro entre esses dois titãs, que deu origem indireta aos estudos orientais no Ocidente, foi através da luta armada:
"Desde seu próprio nascimento o Islam achou-se em conflito com a Cristandade próxima. Movido pela mesma paixão e com as mesmas pretensões, as duas religiões se engajaram em amargo conflito por um milênio. O Islam bateu à porta da Cristandade, perturbando boa parte da Europa por séculos. Com o tempo a Cristandade respondeu com a espada das Cruzadas. A onda do Islam foi detida; a Cristandade ocidental foi unida; o poder do papa cresceu de forma tremenda e a Cristandade voltou sua visão para Oriente. E o Oriente tornou-se objeto de uma busca contínua e agressiva. As cruzadas armadas terminaram em ignomínia por volta do século XIII, e a Cristandade agora pensava em novos meios de penetração" 
A segunda etapa de aproximação se deu a partir do Concílio Ecumênico de Viena (1311-1312), em que houve a criação de uma cadeira especial de estudos das línguas hebraica, árabe, caldaica. Nos anos seguintes as autoridades eclesiásticas declarariam que "a Santa Igreja deve ter abundante número de católicos bem versados em linguagens, especialmente as dos infieis, de maneira a poderem instrui-los na Sagrada Doutrina". Essa tendência cresceu nos concílios seguintes, e a Igreja passou por profundas transformações, desenvolvendo ferramentas intelectuais para apaziguar os conflitos internos decorrentes do surgimento do protestantismo e o questionamento da autoridade eclesiástica. Contudo, Swarup observa que, desde um ponto um ponto de vista mais profundo:
"[...] ainda que diferentes grupos de cristãos tivessem agudas disputas internas, todos eles encaravam o mundo não-cristão de maneira unitária. Após um aplacamento, as nações protestantes também se juntaram ao jogo missionário com grande fervor. De fato, considerando a si mesmos como legítimos herdeiros da verdadeira Cristandade, eles estavam certos de que teriam êxito onde a Igreja Católica havia fracassado" 
George Sale, primeiro ocidental a traduzir o Corão, chegou a dizer que "é somente os Protestantes que podem atacar o Corão com sucesso" e que, na verdade, "a Providência lhes havia reservado a glória dessa demolição". 

William Muir, representante do Império Britânico, quase cem anos depois, se questionaria o porquê de o Islam ainda não ter caído e se convertido, e a razão talvez fosse "o fanatismo dos muçulmanos, a permissividade de concubinato e escravidão, e seus padrões baixos de moralidade". 

Em linhas gerais foi assim os cristãos desenvolveram seus estudos sobre o Islam, segundo Ram Swarup: o Islam foi, desde o começo uma 'fé espúria', seu autor um 'falso profeta'.

Com o aprofundamento dos estudos, essa posição inicial de hostilidade pura cedeu um pouco. Os cristãos começaram a ver vantagens civilizacionais no Islam. O autor cita o exemplo do reverendo Charles Foster da Igreja Anglicana, que, no século XIX, ainda que com o panorama dos estudos islâmicos bem mais avançado, considerava o Islam como 'superstição maligna', e seu fundador como um 'impostor, mundano, sensualista, demoníaco, indo além até mesmo da permissividade do seu credo permissivo'; contudo, conseguia ver assim mesmo a ação civilizatória dos muçulmanos, pois  'a limpeza do mundo da poluição brutal da idolatria e a preparação do caminho para a recepção da fé mais pura, [o Cristianismo], pode bem ser considerada como uma bênção'.

Ou seja, os cristãos viam o Islam de forma semelhante a como Marx via o Capitalismo, como estágio necessário desde a idolatria pura até a Cristandade. 

Em meio a essa visão hostil, visões muito mais liberais sobre o Islam também ganhavam vigor, admitindo suas positividades em diferentes graus, e até louvando suas virtudes, sempre tendo em vista os benefícios que o Islam trouxe à sua sociedade em relação à condição pagã anterior. Por fim, com a popularização dos escritos muçulmanos, os cristãos começaram a perceber que as virtudes de Maomé tinham até mesmo uma raiz legítima dentro da própria ancestralidade profética da religião cristã. Ou seja, as críticas que poderiam ser oferecidas ao profeta caberiam perfeitamente também a Moisés ou aos profetas do Antigo Testamento. Um ataque ao Islam implicava, portanto, um ataque às raízes da psique e do ethos profético antigo. 

A partir dessas percepções mais avançadas, a religião muçulmana começou a ser entendida como 'formidável antagonista', que oferecia questões e problemas muito mais profundos do que pareceu à primeira vista. Ram Swarup cita de novo William Muir para ilustrar essa tese:
"De todas as variedades de religião pagã, a Cristandade não tem nada a temer, pois eles nada mais são que exibições passivas de escuridão brutal, que desaparecerá diante da luz do Evangelho. Mas no Islam encontramos um poderoso inimigo, um usurpador sutil, que subiu ao trono sob o disfarce de sucessão legítima; e atacou as forças da coroa para suplantar sua autoridade. É pelo fato mesmo de o Maometanismo reconhecer as origens divinas, e ter tomado emprestado tantas armas da Cristandade, que ele é um adversário tão perigoso"
O autor diz que, no fim das contas, desde o ponto de vista hindu, que será desenvolvido em seu livro, o conflito entre as duas tradições se dá por uma noção errada da Divindade:
"A verdadeira causa do conflito é, claro, diferente da imaginada aqui por Muir. Ela consiste em uma compreensão inadequada da Divindade da parte tanto da Cristandade como do Islam. O Deus de ambos ensina a perseguir religiões que não sejam a sua própria. Ambos são dogmáticos, fundamentalistas e teológicos. Ambos carecem do Yoga, ou seja, a ciência própria e a disciplina para a exploração interna; ambos buscam expansão externa; ambos agressivamente pretendem ser superiores, e ambos, por  natureza, desconhecem a teoria de co-existência pacífica." 
Se o fervor missionário ofereceu o impulso inicial para a exploração e o estudo do Islam por parte dos cristãos, deve-se considerar que com o tempo o fator religioso foi ficando em segundo plano, cedendo lugar aos motivos imperiais, que tomavam a dianteira historicamente.  O crescimento do racionalismo tornou o Cristianismo menos e menos confiante em si mesmo, e os estudos orientais, que haviam começado e se estabelecido dentro de seus limites adquiriram uma outra dimensão. Swarup diz que o estudo sobre a vida de Maomé do anglicano Margoliouth foi um marco nesse sentido, por sua pretensão mais científica e a riqueza de detalhes, buscados nas fontes originais.

Uma peculiariade nos estudos de Margoliouth, talvez devida aos próprios preconceitos científicos de seu tempo conjugados com as pretensões positivistas dos espiritualistas e a decadência da religião, é o entendimento da revelação do Corão como um fenômeno de mediunidade, comparando-a inclusive com a então recente 'revelação' de Joseph Smith, fundador do mormonismo. O autor anglicano também aplica a teoria da mediunidade (entendida de forma mais ampla) à Bíblia e ao Deus judaico. O profeta é sempre um medium, ou seja, o fator de comunicação entre o transcendente e o imanente. E a figura mesma de Jesus é uma figura mediúnica, um intermediário entre Deus e a humanidade. 

Swarup observa que, assim como a Cristandade, o Hinduísmo também entrou em conflito com o Islam. Ainda que não por sua escolha. Ao contrário dos cristãos, os  hindus nunca se mobilizaram para estudar a religião do profeta. Os reinos dhármicos lutavam militarmente e politicamente, como o fizeram os cruzados cristãos, mas suas elites intelectuais e espirituais nunca quiseram investigar as motivações teológicas e ideológicas da nova religião. No auge das invasões muçulmanas no sul da Ìndia, os textos contemplativos e os debates vedânticos, que estavam sendo produzidos copiosamente, jamais os mencionam em nada, era como se a coisa toda não existisse.

Os hindus, engajados em sofisticados debates sobre a natureza última do Brahman, mantinham suas tecnologias de yoga e ciência interna, mas jamais entenderam o Deus muçulmano, que tinha, literalmente, traços de ciúmes, buscava soberania, apontava escolhidos para missões especiais, proclamava guerras, destruía templos, e os convertia em zimmîs. Swarup diz que muitas questões, que nunca foram nem mesmo perguntadas, ainda hoje são importantes, e devem ser feitas:
"O Allah do Corão é um ser espiritual? Ou é um tipo de formação vital e mental, um ideia hegemônica? Ele é a verdade mais profunda do homem, que reside em seu ser interior? Ou é uma projeção de uma fonte menos edificante da psique humana? Ele é descoberto quando o coração do homem está tranquilo, sem desejos e puro? Ou ele se origina em um estado mental febril? Sua fonte é o samâdhi e o yoga-bhûmi, ou algum transe não-yóguico? Qual é a verdade do profetismo que afirma que Deus pode ser conhecido somente indiretamente através de um intermediário favorito, um 'Filho Único' ou um 'Último Profeta'?
Essas e outras questões, diz o autor, pedem uma elucidação dentro da espiritualidade Hindu, contudo os sábios hindus permanecem silenciosos.
"Será que os sábios hindus foram tomados de tamas e portanto dominados pela preguiça? Ou será que eles habitam uma região além dos temporais dos credos passageiros e das modas ideológicas? Será que estão em um estado que espera as legiões tonitruantes passarem e mergulha em contemplação profunda das verdades eternas novamente?  Ou será que o silêncio é apenas aparente e contém já uma verdade profunda para os olhos que podem ver e os ouvidos que podem ouvir?  A espiritualidade indiana não discutiu, debateu ou se opôs. Mas será que ela não ofereceu uma resposta completa?"
A espiritualidade hindu proclamou que o Supremo está além dos números e da contagem.  Que ela teve inúmeras manifestações que não se repeliam mutuamente no campo espiritual, mas buscavam incluir e reconhecer-se dentro de uma perspectiva abrangente.  Uma espiritualidade que está no coração do devoto e não em povos escolhidos, profecias exclusivas, igrejas privilegiadas, fraternidades ou ummahs. 

Swarup observa que, na verdade, credos como o Cristianismo e o Islam eram inclusive aguardados pelos sábios hindus. Religiões exteriores tinham de surgir na chamada Kali-Yuga. E talvez muito da falta de reação se deva a essa aceitação da realidade (e talvez a expectativa de que essas religiões passem naturalmente). Seu livro, como falei na primeira postagem, busca um caminho diferente do mero silêncio tradicional dos espiritualistas hindus verdadeiros. Propõe, de certa forma, um novo universalismo (o que seria seguido por outros pensadores hindus e tem outros proponentes na atualidade) e observa que,
"Algo inevitável está ocorrendo. O Oriente está acordando de seu sono. A sabedoria do Hinduísmo, Budismo, Taoismo e Confucionismo estão se tornando conhecidas no mundo. [...] reivindicações de  'última profecia' ou 'filho único', até agora impostas por grande condicionamento intelectual, amedrontamento, porrete, estão se tornando inaceitáveis. Mais e mais homens estão buscando experiência autêntica. Uma crença emprestada não serve mais. As pessoas estão deixando de ser crentes obedientes e estão se tornando buscadores. Eles não querem mais serem ovelhas de um terceiro, agora que eles sabem que podem ser seus próprios pastores. Uma autoridade externa, ainda quando é chamada de Deus em algumas escrituras, alternando entre ameaça e promessa, está cada vez menos causando impressão; as pessoas agora percebem que a Divindade é sua condição verdadeira, secreta e que eles buscam dentro de seu próprio ser. Tudo isso é consoante com a sabedoria Oriental."
Nas próximas postagens vamos ver como o autor compara as tradições orientais e ocidentais, como é possível um universalismo sem a narrativa universalista ocidental.

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