Friday, April 27, 2018

Ram Swarup e a visão hindu do Ocidente (parte 3)

Cristianismo, Islam e a intolerância

Os missionários cristãos estudavam o Islam para melhor converter. E dentro desse desconhecimento surgiu também algum reconhecimento. O profeta do Islam honrava Jesus, e declarava que o Deus de sua religião era o mesmo Deus de Moisés e Abraão. O Islam, assim, causava certa perplexidade nos missionários cristãos, pois, uma vez que o campo da 'Boa Nova' já estava definido, como explicar o surgimento de uma renovação disso? 

Os cristãos entenderam, por fim, que o Islam só poderia ser uma corrupção da mensagem cristã. Maomé provavelmente teria entrado em contato com um versão idolátrica e supersticiosa do Cristianismo que existia na Arábia, e a partir dessa versão, formou sua religião.  Ram Swarup cita o famoso sanscritista e agente missionário Max Muller para ilustrar essa compreensão:
"Se ao menos Maomé, iludido e de espírito efervescente, cuja alma agitou-se ao ver seus compatriotas absorvidos na idolatria, tivesse sido levado a associar-se com uma forma mais pura da Cristandade [...] ele poderia ter morrido como mártir pela verdade, a Ásia poderia contar com milhões de cristãos, e o nome de Santo Maomé poderia estar no calendário de nosso livro comum de preces. Pense então, a diferença na presente condição do mundo asiático, se o fogo da eloquência de Maomé houvesse sido exercida em favor da verdadeira Cristandade" 
O Islam e a Cristandade lutaram com a espada. Durante muito tempo. Contudo, quando essa opção foi se esgotando, por diversas razões históricas, não foi só o Cristianismo que teve de se adaptar. O ataque ao Islam vinha agora por meio da apologética. E os muçulmanos com o tempo tiveram de aprender também essa tecnologia. 

Logo os cristãos tentavam provar a veracidade de Cristo segundo o Corão, e os muçulmanos respondiam buscando demonstrar a veracidade do Islam segundo a Bíblia. Para o muçulmano, o Cristianismo era um Islam sem Maomé, e para os cristãos, se Maomé já aceitava o Cristo em sua nobreza e até em seu papel escatológico, faltava pouco para que os muçulmanos também o aceitassem como Filho Único de Deus e salvador. Ambos acreditavam no mesmo Deus, e disputavam o mesmo trono, onde só um poderia permanecer.

Um dos aspectos curiosos dessa nova fase, apologética, é que ambos os lados eram estritamente racionais em relação a fé do outro, sem aplicar a mesma racionalidade para si mesmos. O muçulmanos gostavam, por exemplo, de apropriar-se das críticas do humanismo e racionalismo ao Cristianismo, sem contudo utilizá-las para si mesmo. Além da ausência de autocrítica de ambos os lados, algumas premissas sempre foram mantidas, como o fato de que ambos lutavam pela legitimidade de terem um 'medium' exclusivo entre Deus e a humanidade, compartilhando o mesmo desprezo aos chamados pagãos ou infiéis, e eram ambos contra a chamada 'idolatria' que caracterizava as religiões não-semíticas.

Swarup nota que os judeus, pais espirituais das duas tradições, inicialmente não eram monoteístas. Eles tinham seus deuses tribais, que brigavam entre si, mas que não pretendiam inicialmente um exclusivismo ou universalismo tão marcado.  

O exclusivismo começa com Moisés. O autor especula que Moisés teria sido influenciado pelas reformas religiosas de Aquenaton no Egito, contudo "esse Deus era muito brando e pacífico, e não seria útil para a nova vida dos Judeus. Portanto, durante suas jornadas, eles adotaram um outro Deus, o Deus dos Midianitas, um Deus Vulcão." Essa tendência exclusivista, que nos Judeus era responsável pela sua preservação, sem implicar imposição, foi repassada aos muçulmanos e cristãos dando origem a um Deus ainda mais exclusivista e ciumento, e também mais ambicioso e belicoso. 

O advento do Cristianismo trouxe à terra um Deus que queria se impor à humanidade. Surgia pela primeira vez uma divindade que solicitava que seus seguidores fossem em todas as direções e pregassem seu nome, buscando conversões. Outra diferença notável entre o Deus judeu e o cristão, é que entre os judeus, Deus falava por meio de vários intermediários proféticos, ao passo que com o Cristianismo temos o surgimento do intermediário exclusivo e legítimo.

Diz o autor que os árabes pré-islâmicos conheceram e conviveram com o Judaísmo e o Cristianismo, e não se impressionaram. Mantiveram o culto aos seus diversos deuses em certo nível externo, e quando buscavam algo mais profundo se isolavam em montanhas ou cavernas para meditar, costume seguido pelo próprio Maomé, que, ao contrário de seus contemporâneos, de fato sentiu atração pelas notícias do Cristianismo e do Judaísmo, e por fim declarou, por meio das supostas revelações, que ele mesmo, Maomé, representava a continuidade daquelas tradições proféticas, e começou a pregar a conversão e o abandono dos deuses de sua nação.

Swarup lembra que ao longo do grande conflito entre Maomé os árabes de seu tempo, ele chegou a oferecer reconhecimento aos deuses locais, buscando uma conciliação, no episódio que foi celebrizado recentemente como os 'Versos Satânicos', pelo escritor Salman Rushdie. Maomé entendeu depois que os versos conciliatórios teriam na verdade sido inspirados por satanás e voltou atrás da sua posição, buscando novamente a conversão e a adoção do Deus único.

Maomé foi ridicularizado pelos seus contemporâneos, que diziam que sua mensagem era de baixo valor, e que ele era um poeta e adivinho, um tipo desacreditado. Ele resistiu, e os ameaçava, de início verbalmente e, à medida em que sua mensagem foi ganhando força, a retribuição e as ameaças foram ganhando o campo da ação concreta e violenta. Com o tempo, caravanas eram saqueadas, os ídolos derrubados, os templos foram convertido nas casas do novo Deus, e, por fim, os árabes receberam o ultimato de se converterem ou morrerem. 

A virada, por assim dizer, também tornou o Islam atrativo por motivos econômicos e políticos -- os novos convertidos tomavam parte na distribuição da riqueza segundo a nova ordem. E essas propriedades e riquezas posteriormente ganhariam um caráter hereditário, criando um novo sistema de distribuição e hierarquia social.

Os árabes pagãos eram tolerantes para com cristãos e judeus, diz Swarup. Muitos deles viviam na região, e que inclusive grande parte deles eram hereges que fugiam da perseguição que sofriam entre os próprios cristãos e judeus. Essa tolerância foi consideravelmente diminuída com o estabelecimento do Islam. 

Os pagãos aceitavam os cristãos e judeus, rejeitando os seu Deus, e os muçulmanos aceitavam o Deus, mas rejeitavam cristãos e muçulmanos. O autor observa que essa é uma diferença fundamental: o paganismo, por assim dizer, tem vários deuses, e acredita em uma só humanidade, ao passo que o semitismo tem apenas um Deus, mas acreditam em pelo menos duas humanidades dividas pela aceitação de uma revelação. A divisão não é mais cultural, econômica ou política, mas metafísica.

A teoria do Deus único, implica a do profeta, salvador ou intérprete exclusivo. À medida que o Deus semítico se tornava um, ele também se tornava exclusivo em suas comunicações. Mesmo quando ele tinha um povo escolhido, esse povo não tinha um contato direto com Ele. Ele dizia que enviar-lhes-ia um profeta  para instrui-los, e o povo deveria obedecer a esse profeta. Esse indivíduo falaria em nome de Deus, e quem o desobedecesse seria punido. Isso tomou forma do salvador por meio da Cristandade, e se tornou o intercessor e último profeta no Islam. 

A intolerância, portanto, está na raiz das religiões semíticas. É a tolerância aparece como fato excepcional. O autor observa, que certa intolerância sempre existiu nas culturas, contudo nunca foi legitimada por uma teologia: "foi com a vinda da Cristandade e do Islam que o fanatismo religioso e a arrogância desceram à terra em larga escala em com poder renovado". Onde quer que essas tradições espirituais tenham chegado, diz Swarup, elas carregaram a espada, elas carregaram fogo e espada, demoliram e ocuparam os templos dos outros. 

A doutrina de um único Deus, uma única igreja, uma única ummah, uma única vida, um único julgamento, era desconhecida na maior parte da história da humanidade:
"Falando historicamente, [essa doutrina] é mais uma aberração, uma moda local que se consolidou através da conquista e da propaganda, e que não poderia ter sido imposta de nenhuma outra forma.  [essa doutrina] difere não só do politeísmo, uma expressão religiosa popular, mas difere das religiões místicas que expressam a busca mais intensiva do homem por uma vida espiritual. É certamente diferente da espiritualidade conhecida no Oriente pelos herméticos, estoicos, pitagóricos, taoístas e vedantistas; é diferente delas na maioria das coisas, particularmente em seu conceito de divindade, homem e natureza, é diferente em suas definições, modos, teoria e práxis." 
Expansão externa e conhecimento interno 

Swarup diz que a religião e a devoção surgem como uma necessidade em todas as culturas, contudo ela não significa necessariamente a mesma coisa em todo canto. Em muitos casos a religião se mistura com as necessidades mais baixas da humanidade, e algumas vezes, o que se quer dizer ao usar o termo Deus, é nada mais que um faraó ou um Calígula.
"Mas tal Deus não pode durar muito ao menos que seu significado seja congelado e sustentado com uma teologia. Mais frequentemente um Deus tem de ter outras qualidades, mais humanas, e servir de auxiliador e guia, e oferecer consolo e socorre ao homem em suas dificuldades - e algumas vezes até mesmo nos desígnios humanos mais questionáveis, como os desígnios contra seus inimigos"
Essa noção de divindade, se serve a muitos em geral, não pode satisfazer àqueles que buscam um significado mais profundo na vida, uma lei superior de conduta. Pessoas que buscam respostas para questões superiores sobre sua origem, sua identidade, ou como diz o Veda, pessoas que querem migrar do irreal para o real, da escuridão para a luz,  e da morte para a imortalidade. E nesse ponto a espiritualidade hindu diz que as questões mais profundas sobre Deus se encontram com as questões sobre o Si Mesmo. 

Os homens vivem a maior parte do tempo em seus desejos, ódios, em seus egos e ignorância e são esses aspectos humanos que lançam um véu na verdadeira vida interior. Para descobrir essa vida, é preciso purificar os instrumentos de conhecimento da realidade, desenvolver novos poderes na alma, controle dos sentidos, não-violência, firmeza mental, compaixão. O homem tem de desenvolver devoção, discriminação espiritual, e poder de concentração, desapego e universalidade de ponto de vista. 
"À medida em que ele vai para dentro si, ele entra em novos planos e realidades até então desconhecidas. Ele se encontra com muitas formações psíquicas e seres espirituais de vários graus de pureza e poder correspondente à sua própria pureza, necessidade e qualificação. Ele também encontra deuses de desejo, e deuses de ego e se a pureza suficiente não tiver sido estabelecida na alma ele pode se identificar com um deles; ele pode até mesmo declarar que seu deus é o Deus, ele pode profeticamente exigir que seu Deus seja adorado por todos."
Swarup mostra que a natureza da intuição espiritual, conhecida através das ciências yóguicas, nos oferece uma visão muito diferente de Deus. As qualidades superiores que nutrem a alma são aquelas em que a divindade é compreendida singular e multipla. E nessa compreensão o homem chega a perceber que ele mesmo é uno com essa realidade, e não só isso, mas que todos os outros seres humanos também o são. Diferente da visão cristã que advoga que somente Jesus é uno com essa realidade, ao passo que todos os outros homens são unidos com Adão. Nessa compreensão espiritual não há persuasão, mas a visão verdadeira da unidade entre todos os homens e todo o universo com o princípio supremo.

A espiritualidade hindu busca o Âtmâ-jñâna, o conhecimento do Si Mesmo, e o conhecimento da divindade não pode ser separado disso. Sem uma doutrina correta do Atma, não há doutrina correta do Deva. Essa divindade é conhecida na parte mais luminosa da mente, na chamada 'caverna do coração', é compreendida pelo ajña-chakra, pelo terceiro olho, ou pela coroa dos mil lótus no topo da cabeça. E Allah e Jeovah não são deuses obtidos por yoga, pelo conhecimento de si mesmo, são na verdade mais parecidos com ideologias do que espiritualidades, segundo Swarup.

O papel do Hinduísmo no mundo

Segundo o autor, há um despertar nos povos colonizados, no sentido de entender que as religiões que praticam lhes foram impostas. As culturas estão tentando entender suas raízes mais antigas, ancestrais, e hoje em dia não se satisfazem mais com a Cristandade ou o Islam. A visão de que o paganismo era uma rede integrada de compreensão que vigorava em outro período da história está lentamente ressurgindo. 

Assim, o velho mundo, a Índia, tem uma mensagem aos povos do novo mundo, que começa a se desvincular da grande narrativa que lhe foi imposta. A desmoralização das tradições ancestrais tem como encontrar no Sanatana Dharma uma referência espiritual para entenderem o que era o mundo pré-cristão. A questão é diferente nos países islâmicos que ainda tem de lutar pela independência intelectual básica.
"O Hinduísmo pode ajudar todos os povos que estão em busca de uma renovação religiosa, porque ele preserva de alguma forma os seus velhos Deuses e religiões; ele preserva, em seus váriso níveis, tradições religiosas e intuições que foram perdidas. Muitas países hoje sob influência do Cristianismo e do Islam, tiveram em algum momento grandes religiões; tiveram também grandes Deuses que preenchiam adequadamente suas necessidades éticas e espirituais e inspiravam grandes atos de nobreza, amor e sacrifício. Mas por muitos séculos, essas tradições têm estados sob ataque e muito tem sido dito contra elas, enquanto elas permitiram a nova divindade totalitária oferece tudo o que quisesse. Os resultados foram desastrosos. O fanatismo religioso desceu sobre a terra, e o conceito do Deus único trouxe o conceito das duas humanidades, e a agressão religiosa se tornou a mais alta tarefa e moralidade. A religião mesma se tornou dogmática e perdeu sua interioridade e visão.  Os indivíduos e as coletividades se sentiram vazios por dentro."
Na próxima postagem vou concluir a resenha com as considerações de Swarup contrastando a espiritualidade semítica e a espiritualidade yóguica, além de fazer fazer alguns comentários críticos ao livro, colocando-o em perspectiva histórica e entendendo-o diante de outros pontos de vista que abordam a comparação de tradições espirituais.

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